por que você não escreve sobre o que te aconteceu?
um texto para te convencer a começar a escrever
esses dias eu tava assistindo uma entrevista do Marcelo Rubens Paiva no roda viva. Marcelo, pra quem não sabe, é filho da Eunice e do Rubens Paiva e autor do livro “ainda estou aqui” que inspirou o filme de mesmo nome que conta a história dos seus pais. além disso, Marcelo também ficou muito conhecido pelo seu livro “feliz ano velho” que fala sobre como ele ficou tetraplégico aos 20 anos de idade.
enfim, em algum momento dessa entrevista, ele conta que, certa vez, num documentário, perguntaram-lhe algo sobre qual foi o momento mais marcante de sua vida. ele, que costuma ser atrelado a esses dois grandes acontecimentos (o desaparecimento do seu pai e seu acidente), respondeu que nenhum deles foi o seu momento mais marcante, mas sim quando um colega de trabalho lhe perguntou: “marcelo, por que você não escreve sobre o que te aconteceu?”
o maravilhoso mundo da escrita
aprender a escrever foi a coisa mais legal que aconteceu na minha vida quando eu tinha 6 anos de idade. eu entendi logo que a escrita me dava a chance de transformar meus pensamentos em coisas reais - e isso mudou tudo.
eu pegava todas as agendas velhas da minha mãe e os cadernos que não usava na escola e os transformava em diários que me levavam para mundos mágicos, passava horas e horas fazendo isso. nas férias, sempre levava meu > caderno da vez < pra casa das minhas primas e, antes de dormir, escrevia sobre tudo que eu tinha feito e como tinha sido meu dia (tenho minha infância inteira narrada por mim mesma em cadernos que guardo até hoje, claro).
era tão íntima minha relação com a escrita que eu lembro de me surpreender quando descobri que essa não era uma coisa que todo mundo fazia. quer dizer, pra mim, escrever era essencial tipo comer ou escovar os dentes. prestando atenção no mundo, notei que nem todo mundo escrevia e isso me deixou horrorizada. eu me questionava: como as pessoas conseguem viver sem escrever?
até hoje penso da mesma forma.
escrever sem pretensão
apesar de escrever desde criança, ser escritora ou algo do tipo não era um grande sonho. foi só no ensino médio que eu passei a entender que isso podia ser uma profissão - daí surgiu o desejo de estudar jornalismo e compartilhar as coisas que eu escrevia com o mundo. mas até então, eu não escrevia com o objetivo de mostrar pra ninguém, eu escrevia por necessidade.
e eu gosto de falar isso porque escrever não precisa necessariamente ter uma relação direta com o publicar/mostrar pra alguém. essa escrita, a que eu defendo tanto, não é essa que eu faço no substack ou nas minhas redes sociais, mas sim a que eu faço nos cadernos e nos documentos que ninguém lê. o resto é só consequência.
tem um livro que eu sempre uso de exemplo quando vou falar disso. é o “caderno proibido”, da alba de céspedes, um dos meus livros favoritos da vida.
ele se passa nos anos 70 e é escrito em formato de diário por uma mulher cuja vida gira em torno de ser esposa, dona de casa e mãe. o diário se torna uma maldição pra essa mulher, pois escrever faz com que ela cultive o hábito de analisar sua própria vida, de bater de frente com seus pensamentos sombrios, de questionar seus princípios e as normas da sociedade em que vive. e isso é coisa demais.
p.23“São duas da madrugada, levantei pra escrever, não conseguia dormir. A culpa, mais uma vez, é deste caderno. Antes, eu esquecia rápido o que acontecia em casa; mas agora, desde que eu comecei a anotar os eventos cotidianos, mantenho-os na memória e tento compreender por que se produziram.”
escrevendo ela também vai percebendo que sua vida é tão escamosa quanto a de todos que a rodeiam. nota que o fato de ter uma vida banal não anula sua complexidade. ela vai se descobrindo gente e, assim, deixando de se sentir coadjuvante da própria realidade.
é uma coisa linda demais de acompanhar.
sabe, eu quero morrer quando alguém me manda mensagem dizendo que queria começar a escrever, mas não tem uma vida tão interessante. quando leio esse tipo de coisa, penso que a pessoa está admitindo que sua própria vida não importa o suficiente a ponto de ser registrada. e acho isso triste demais.
eu escrevo praticamente todos os dias há anos, vocês acham que diariamente acontece uma coisa extraordinária na minha vida? é definitivamente o contrário disso. sabe o tipo de coisa que eu fiz hoje? comi pizza de café da manhã, trabalhei durante 8h toda torta no sofá, participei de duas reuniões de praticamente 1h cada, terminei de assistir hacks (série foda) e lavei o cabelo.
mas quando sento pra escrever no fim do dia, não é sobre isso que eu falo. na verdade, eu escrevo sobre a vontade que eu tive de chorar olhando pro meu sobrinho hoje cedo, sobre a risada que eu dei quanto notei que minha mãe estava pintando o quarto cantando oruam, sobre o susto que levei do filho da putinha do meu gato sacana, sobre a chuva que caiu no almoço, sobre a música que ouvi do vizinho, sobre a saudade que eu sinto do passado, a angústia que me tirou o sono a noite inteira, minhas dúvidas sobre minha carreira, minha vontade de controlar o tempo. eu escrevo sobre toda essa vida que se esconde nas entrelinhas da minha rotina sem graça.
sua vida é interessante, você só precisa olhar com mais calma, com mais carinho, com mais curiosidade.
eu já contei isso outras vezes, mas certo dia, eu tava voltando do almoço e vi um cara muito parecido com meu pai do outro lado da rua. por incrível que pareça, o cara tava com uma menininha muito parecida comigo quando era criança.
aquela cena me deu um embrulho no estômago, eu fiquei os acompanhando com o olhar até eles virarem a esquina. veja só, eu num dia de trabalho presencial, cheia de coisa pra fazer, parada no meio da rua observando duas pessoas desconhecidas e, por causa disso, sentindo uma saudade esquisitíssima do meu pai que, por sinal, é vivo.
abrindo um parênteses: meus pais se divorciaram quando eu tinha 10 anos e eu nunca vou superar isso. tenho problemas paternos, maternos, todos os tipos de problemas por conta dessa porra desse divórcio traumatizante.
retomando: lá estava eu, parada na calçada, no meio de um dia normal, sentindo uma falta que eu nem sabia identificar se era minha ou da criança que eu fui. sentindo saudade de alguém com quem convivo e tenho uma ótima relação e que, ainda assim, não existe mais. sentindo saudade do pai que deixei de ter acesso quando ele decidiu ir embora num dia aleatório de 2010. eu, ali, sendo humana demais pra caber na rotina e tendo que caber mesmo assim.
me diz, o que eu faria com tudo isso que sinto se não pudesse escrever?
lugar pra respirar
sou uma grande incentivadora da escrita por causa disso. porque eu acho que escrever tem um poder transformador na vida de qualquer pessoa. porque a escrita organiza os pensamentos, nos faz entender um pouco mais sobre nós e sobre o mundo e torna as coisas mais reais. é um lugar pra tirar camadas, pra ser quem somos, pra falar sobre sentimentos estranhos, pra sermos sinceros. é um lugar pra respirar.
e, de quebra, ainda se torna também um grande memorial, um lugar pra revisitar e perceber que as coisas mudam, que a gente cresce, que a vida passa, que você não é coadjuvante nisso tudo.
por favor, façam isso por vocês. escrevam.
a frase da semana
essa semana teremos apenas uma frase, que é do mesmo livro que eu citei no texto.
“não sei imaginar minha vida sem a escrita porque para mim nunca existiu vida sem escrever.” (caderno proibido, alba de céspedes, p. 268)
até a próxima, queridos <3
beijo, alê!
Eu sou dessas pessoas que acha a própria vida desinteressante, inclusive acho que por isso leio e vejo tantos filmes.
esse texto me lembrou um trecho de um poema do Shane Koyczan (um poeta canadense) chamado To This Day (traducao minha aqui):
"e se você não consegue ver nada de belo em si
arrumei um espelho melhor
veja mais de perto
encare por mais tempo
porque tem algo dentro de você
que te fez continuar tentando
apesar de todos que te disseram para desistir"
e acho que escrever (é até viver) é isso né, a gente se enfrenta nos momentos de dúvida e encontra algo de extraordinário no comum, só olhando com um pouco mais de atenção (e atenção e amor, não são a mesma coisa?)
Poh Ale... Sempre que você posta algo, soa estranhamente preciso com o que eu tô vivendo (ou tentando viver, no caso). Semana passada eu fiz uma newletter aqui, escrevi e reescrevi, editei, criei um nome, fiz uma logo, li de novo e de novo e de novo até que finalmente postei. Com o intuito de revisitar algumas memórias (tenho pastas e mais pastas em um HD sobre dias que julgo terem sido incríveis) e a propósta era exatamente essa, revisitar tudo isso e ir contando algumas histórias, mas honestamente, depois de uma das muitas crises que antecedem esse rito doentio de comemorar a passagem do tempo ao longo dos anos (em breve chegarei aos 26), não tenho conseguido me reconhecer no meu reflexo do espelho e essa rotina vai dilacerando aos poucos qualquer suspiro de juventude, até que depois de uns 2 dias do "meu hd" no ar (minha news) eu reli e achei completamente fora do normal. É muito difícil tentar sobreviver (sobretudo em algo que eu de fato não me reconheço mais). Enfim, tirei do ar... Vamos seguindo...
O simples fato de eu estar agora debruçado em um notebook deixando esse comentário aqui já me deixa feliz pois seus textos me causam algo como "Olha só, dá para ver as coisas com calma e de outro ângulo no caminho", mais uma vez muito obrigado por ser você e compartilhar isso com a gente!
Abraços!