e eu... gostava tanto de você
anotações que faço enquanto corro e fujo desta sombra mas em sonho vejo este passado e na parede do meu quarto ainda está o seu retrato
carta aos leitores
oi, amigos! hoje eu queria muito escrever sobre como tudo na vida da gente, no final, é sempre sobre os nossos pais. eu pensei nisso enquanto reassistia o filme The Father (2020) que é um dos meus filmes favoritos dos últimos tempos. mas, acabei indo pra um outro caminho… bem no caminho do father mesmo!!!! há ainda alguma limitação que me impede de escrever sobre mother kkkkk e aí foi isso aí. ultimamente eu tô tentando fazer dessa newsletter um lugar de muita liberdade pra minha escrita. a ideia é que os textos sejam um grande fluxo de pensamentos sem muita interferência das minhas chatices e perfeccionismos, então tomara que a coisa toda não esteja muito desconexa.
boa leitura e até semana que vem! ✸
gostava tanto de você
Um homem e sua filha acabaram pegando todo espaço de um estreito corredor na estação da Lapa um dia desses. Ele, com uma mochila nas costas, uniforme de trabalho, olhando sempre para baixo - em direção à menina. Ela, vestida de princesa, com tiara na cabeça, falando sem parar sobre todas as coisas legais que uma garota não pode deixar de contar ao seu pai. Os dois, de mãos dadas, caminhando bem lento, travando o fluxo. Eu, claro, poderia ter pedido licença, tê-los ultrapassado, deixá-los pra trás, mas não tive coragem. Não saber quando a menina teria a atenção de seu pai toda voltada pra ela de novo, me fez pensar duas vezes antes de atrapalhar aquela memória com minha pressa. Tudo que eu fiz foi reduzir o passo para acompanhá-los.
Quando eles saíram do meu caminho, continuei andando devagar.
Nenhum pai e nenhuma filha andando na rua passaram despercebidos por mim desde que meus pais se divorciaram, há 15 anos atrás, e eu me afastei consideravelmente do meu pai. Quando adolescente, me lembro de sentir uma tristeza muito profunda quando minhas amigas falavam coisas como “meu pai vem me buscar” ou “meu pai vai me matar”. Sempre quis que meu pai fosse me buscar ou quisesse me matar também.
Por muito tempo, acreditei na ideia de que fumava cigarro escondido do meu pai. Sempre que ele vinha, eu jogava todas as minhas bitucas fora e escondia meu maço na mochila, como se minha vida dependesse de não ser pega fumando por ele. Mas, num desses dias, eu o vi roubando um dos meus cigarros da mochila - claro, nós fumávamos a mesma marca, Carlton Dunhill. Ou seja, percebi que ele sabia do meu hábito há meses. Parei de fumar.
Passei muitos anos nutrindo uma raiva descomunal pelo meu pai. Criei entre nós uma barreira gigantesca, o culpei por cada pequena dor que senti na vida. Muitas vezes, quis morrer só para que ele sentisse minha falta. Achei mesmo que nunca fosse voltar a amá-lo, apesar de nunca ter parado.
Todo esse distanciando durante minha adolescência causou uma espécie de lapso temporal na minha memória. Quando dei por mim, eu já tinha virado uma mulher e ele já tinha tido outra filha, casado de novo, construído uma nova família - da qual eu jamais faria parte, mesmo que tentasse (apesar de nunca ter tentado).
No fim, deu tudo certo: eu cresci, fiz terapia, ressignifiquei nossa relação; ele teve outra família e, ao que parece, é um bom marido e um bom pai. Fomos crescendo, separadamente, mas virando pessoas melhores um para o outro e para todos ao nosso redor.
Mas nunca chegamos a nos conhecer. E isso ainda dói.
Às vezes, quando ele está na minha casa, mexe nos meus cadernos e me pergunta coisas como: “essa é a sua letra, filha?”. A quantidade de questionamentos que ele faz sobre coisas básicas da minha vida me faz perceber que ele também sente muito por não ter me visto crescer.
Certo dia, há uns anos atrás, meu pai foi parar no hospital com pedra na vesícula ou algo do tipo. Eles, ele e minha irmã, me contaram isso depois de um bom tempo, quando tudo já estava bem. Ele ficou hospitalizado e eu nem soube. A minha tristeza por não ser procurada nos maus momentos também é um reflexo do quanto eu sinto por não tê-lo visto envelhecer.
Observo minha relação com meu pai e a comparo com a relação dele com a minha irmã. Somos diferentes, todos diferentes. Eu, ela, o meu pai, o pai dela. Tudo que eu precisei passar para que o meu pai se transformasse no pai dela.
Eu a amo e fico aliviada de que ela esteja tendo uma experiência diferente da minha, mas são comparações inevitáveis e eu seria hipócrita se dissesse que não penso nisso.
Mesmo que o divórcio já não seja uma grande questão na minha rotina e - por incrível que pareça - eu não lembre mais disso com frequência, eventualmente ainda me pego pensando em tudo que aconteceu, como é o caso agora. Nesses momentos, sinto como se minha vida nunca tivesse parado de girar em torno dos meus pais.
Um dia, fiz uma chamada de vídeo com meu pai e ele me mostrou que estava fazendo pastel pra eles jantarem. Quando desliguei o telefone, chorei como se ainda fosse a menina de 2010. A solitária, perdida e ressentida menina de 2010. Claro que me achei uma idiota, sempre fico me achando idiota quando choro por essas coisas. Sinto como se compreendê-lo, perdoá-lo e humanizá-lo não fosse o suficiente para evitar a angústia que me vem toda vez que lembro que eu não tive um pai que frita pastéis pra mim num sábado à noite.
E aí, me vem, que apesar de entender que tudo aconteceu exatamente do jeito que teve que acontecer, talvez eu nunca tenha aceitado que o pai que me sobrou é apenas um pedaço do todo - um dia de domingo no parque, um almoço com as horas contadas, uma passadinha rápida pra me dar um abraço de aniversário, uma mensagem no WhatsApp.
Num diário do ano passado, escrevi:
ontem meu pai fez 48 anos e hoje nós fizemos um churrasco aqui em casa pra comemorar. ele demorou muito pra chegar e eu fiquei apreensiva, porque meu pai é super adiantado, nunca se atrasa. cheguei a achar que ele não viria, apesar de ele nunca ter feito isso [prometido vir e não aparecer]. então, eu percebi, enquanto cozinhava sem escutar música pra poder ouvir o barulho do portão abrindo, que ainda vivo com um medo absurdo e infantil de que ele me abandone outra vez.
Gostava Tanto de Você
Não sei por que você se foi
Quantas saudades eu senti
E de tristezas vou viver
E aquele adeus não pude dar
Você marcou a minha vida
Viveu, morreu na minha história
Chego a ter medo do futuro
E da solidão que em minha porta bate
E eu
Gostava tanto de você
Gostava tanto de você
Eu corro, fujo desta sombra
Em sonho vejo este passado
E na parede do meu quarto
Ainda está o seu retrato
Não quero ver pra não lembrar
Pensei até em me mudar
Lugar qualquer que não exista
O pensamento em você
E eu
Gostava tanto de você
Gostava tanto de você
essa foi a newsletter semanal mundinho ale br, o diário virtual de uma pessoa que nunca superou nada na vida e tem uma relação complexa com exatamente todas as coisas do mundo. alessandra santos, a pessoa em questão, além de ser uma escritora profissional de diários, é mais ou menos uma artista, quase uma jornalista e, às vezes, uma tiktoker. também tem dificuldades de se autodenominar. ela se concentra apenas em viver dias em sequência dentro de seu mundinho - o ale br. se você gostou dessa edição, comente, se inscreva, fique, me dê a honra de decorar sua caixa de e-mails com groselhas toda segunda à noite. se não gostou, ok, vou superar.
um beijo e até a próxima.
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Alê! Que texto intimo 🥺
Acho que humanizar nossos pais é um processo importante de amadurecer. Mas, em meio a isso, é importante humanizar a gente também, né!? Digo que quase sempre, é entender que aquele sujeito deu o que pode, mas que isso pode não ter sido o suficiente, e ai, o que fazemos com o que faltou para nós? Cuidamos, né!?
Humanidades (…)
Um abracinho procê! 🫂